quarta-feira, 11 de maio de 2011

A HOSTILIDADE DA MEMÓRIA


A minha memória é um lugar no qual o maravilhoso se revela em intensidade tal e tamanha que por vezes penso ser ela não a residência das reminiscências e nostalgias, mas sim, o espaço no qual eu sou hostilizado cotidiana e periodicamente por pessoas, lugares, coisas, odores, figuras e sentimentos, uma hostilidade implicante e arrebatadora do presente vivido.
A memória revigora a existência, refaz a vida e seu contínuo de enfado e repetições em fragmentos espetaculares,  reveladores da graça do existir, como antídoto contra as nossas mazelas e tristezas.
Por sermos humanos podemos resgatar todos os cacos do passado, todas as experiências vividas e remontá-las em tão variadas formas e conteúdos que é impossível não se sentir melhor, mais senhor do nosso tempo, e dos cacos, nascem mosaicos prazerosos de serem contemplados dentro de nós.
De todos os fragmentos que eu reúno constantemente, são as pessoas que por mim passaram e por variadas razões eu nunca mais as vi, nunca mais ou verei que povoam minha memória. As lembranças de algumas delas são tão vivas, tão nítidas em mim que consigo trazer os odores, os olhares e pequenos trejeitos, o som e a inflexão da voz, os sorrisos e risadas todos novamente se mostram presentes em mim como se pudesse eu dialogar, tocar e sentir com estas pessoas, os cacos são remontados paulatina e desordenadamente e o prazer, a alegria da memória, acaba sendo pura hostilidade.
Os ruídos criados dentro de nós, no intuito de reviver o tempo vivido, a memória daqueles que um dia vivemos ou convivemos, se transformam em hostilidade ao nos acossar em um desejo de retorno, de querer voltar, e por mais desejado não conseguimos fazê-lo, tudo se mescla entre a contemplação alegre do mosaico formado pelos mais variados cacos e a certeza da ausência, do não mais viver, tocar ou sentir quem a nossa memória aviva.
O hostil não é mal, o hostil não é cruel, o hostil é o primo irmão da ingratidão, covarde, impondo a nós as veredas da nostalgia, que comprime o peito, que atordoa nossas idéias e imperativamente, como um tirano, nos impõe a verdade do tempo vivido e nunca mais revivido, hostilidade indecente, quase obscena, nos põe acuado no canto e provoca desejos, prazeres, sabores, sensações tomadas no tempo passado e nunca mais repetidas.
Queria não precisar da memória, queria, mas toleramos a sua presença provocadora, crendo, ainda ser ela uma parte necessária para nos manter vivo, penso em Guimarães Rosa e um pequeno poema no qual, para subverter a hostilidade da memória, afirma, “eu tenho saudades do futuro”, queria eu poder ter tamanha saudades para  transformar os meus os cacos e seus mosaicos  em um olhar do futuro,  e não, uma insidiosa provocação do passado, vivo dentro de mim, morto no tempo.

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