quarta-feira, 11 de julho de 2012

A Escola não é uma Democracia



Uma mítica esquerdista e enviesada pela pequena burguesia, fez crer a sociedade brasileira que a escola é um lugar democrático, não. Não poder ser e nunca será. O porquê é simples, a escola é um estado técnico como qualquer outra instituição social que nos cerca e nos servimos.
Por estar sustentada em um universo científico e técnico a escola obedece a um conjunto de critérios e preceitos comuns a qualquer equipamento social que atende ao cidadão, crer, ingenuamente que terceiros possam inferir ou ter ingerência sobre o trabalho da escola é como acreditar que o paciente possa discutir os procedimentos com o médico, ou o contratante possa discutir as especificações técnicas com um engenheiro civil.
A questão é saber por que ninguém espera que médicos, engenheiros, bioquímicos, veterinários, zootécnicos, e todos os profissionais e instituições que lhes servem sejam democráticos em seus pareceres ou procedimentos, mas na escola todos se sentem confortáveis par produzir juízos e reverberar verdades sem qualquer incômodo.
Elenco aqui algumas hipóteses para tal realidade, primeiro, nossa sociedade possui um baixíssimo nível de escolarização, ou seja, a maioria esmagadora dos brasileiros passa pouco tempo na escola, hoje não mais de sete anos.
Segundo, a sociedade promove o debate educacional muitas vezes á partir de economistas, biólogos, médicos, terapeutas enfim se dá voz a quem não vive a escola ou a pensa em seu cotidiano.
Terceiro, há uma confusão, em especial na distinção entre escola pública e privada, como apenas me dediquei a vida toda a escola privada posso falar sobre ela, a classe média que paga pelos serviços educacionais acredita, ao menos uma fração dela, que cada pagante pode fazer e ter interferência sobre o que e como a escola deve operar seu cotidiano.
A escola assim como toda instituição social privada precisa ser rentável para poder existir, da mesma forma que cada uma possui projetos pedagógicos próprios, materiais didáticos escolhidos por suas equipes e valores intrínsecos a si. As famílias ao se matricularem em uma escola fazem valer uma série de fatores, de forma que ao deixar seus filhos aos cuidados da instituição cabe aos responsáveis um conjunto de deveres que precisam ser compartilhados com a escola, entre eles a pertinência crítica necessária e fundadora das relações profissionais, porém não se pode e nem deve confundir tal limite, a custo de se fazer da escola refém dos desejos e anseios de indivíduos e não do coletivo a qual a escola tem por princípio responder.
Quando falamos em limites nos reportamos a situações óbvias em todas as instituições, porém, na escola diante de alguns grupos familiares não o são, por exemplo, desde a exigência de uma obra até a demissão de um profissional não cabem às famílias tais decisões. Seja porque não se pode expor a realidade financeira de uma escola, assim como o estabelecimento de prioridades é uma decisão institucional e não de quem compra pelo serviço. O mesmo vale para os juízos acerca dos profissionais, todos tem o direito a fazer críticas e observações, mas não impor os seus desejos.
A relação família-escola não é algo pautado pela democracia, é uma troca, a escola presta serviços educacionais, as famílias são convocadas a participar da vida escolar dos seus filhos, mas não da gestão pedagógica ou administrativa da escola. Um serviço assim como um negócio não tolera a democracia pelo simples fato de haver entre o objeto em si e aquele que usufrui uma contradição insuperável, pois a despeito de tudo o demo (povo) é chamado a participar da coisa pública e não da coisa privada, tentar superar a contradição é inverter papeis e em fazendo, a escola deixa de ser escola para se tornar um arremedo de família, deixando assim de cumprir seu papel social.

terça-feira, 3 de julho de 2012

MEUS QUINZE ANOS


Quando eu tinha quinze anos, e lá se vão trinta e três, quase trinta e quatro anos eu era o cara, expressão esta que não existia, mas se eu não era, eu me sentia o máximo, e não é difícil explicar, se você lembrar dos seus quinze anos me dará razão. Eu tinha uma insegurança danada, contudo e em especial com as meninas, afinal nunca é fácil ouvir um não, mas eu não deixava nada transparecer, eu encarava o desafio de convida-las para dançar, para sair, ousava passar as mãos pela cintura, ou pegar na sua mão, mesmo que a minha estivesse suada e, ás vezes, gelada, eu temia, mas, não me deixava abater, encarava todas, mesmo que a rejeição fosse muito mais constante que a aceitação, mas quem se importava? Em nome da minha presença diante do grupo de amigos eu era um franco atirador, cheio de medos que ninguém sabia.
Um dia, como tudo na vida, a realidade nos massacra expondo a verdade, e aos quinze anos é o tempo onde estas coisas acontecem. Revolvendo a minha memória, este lugar divino onde a existência se revela como significante, como disse Santo Agostinho, a memória reside no coração, voltei aquele evento que me fez de novo tímido, de novo inseguro, de novo normal como todo garoto de quinze anos.
Em uma festa conheci duas meninas, Beatriz e Maria, como toda menina de quinze anos elas tinham a cumplicidade maldosa típica do feminino, sempre amigas, porém sempre oportunistas para ver quem levaria vantagem diante de uma situação, fiéis entre si, mas vorazes competidoras. Dancei com uma, dancei com a outra, voltei e dancei com a primeira, bebi uma cuba libre e de novo peguei a segunda para dançar, olhando daqui, minha capacidade abstrativa e de avaliação da situação era bastante reduzida, adicionando a isso um certo torpor prazeroso oferecido pela bebida, mas afinal quem pode saber fazer uma análise razoável sobre a realidade aos quinze anos?
Beatriz tinha uma certa condição de mistério, uma cintura curvilínea, bem definida, um silueta delgada que ao envolve-la em meus braços para dançar parecia de uma sensualidade delicada, sensível, e inegavelmente provocadora. O decote, sim havia um decote no qual a minha imaginação mergulhou tantas vezes que por certo errei o passo, havia algo de mágico por entre aquele vão, a pele fina, morena os olhos grandes pareciam, e só pareciam me dizer:  vai bicho, manda ver na mina. Não fui, não naquele momento.
Maria, a despeito das minhas fantasias era de outro tipo, as curvas acentuadas, o quadril do tipo espetacular sem ser ofensivo, um colo maior, nos olhos um certo brilho de desejo sincero e intenções não confessas, mas, quando me afastava e podia olhar direto em seus olhos, ela maliciosamente fingia olhar para o lado, me permitindo apenas ver o canto dos olhos, assim como quem deixa a ousadia sob controle estrito diante da ameaça evidente, controlava minhas mãos com uma atenção canina, e simultaneamente parecia empurra-la para todas as parte do seu corpo. Minha mão demorou a entender tal código.  
De verdade eu não entendia nada do que era a sensualidade feminina, aos quinze anos as coisas são de uma objetividade doentia, afinal quem aos quinze anos é leitor de Fernando Pessoa, quem, nesta idade sabe especular sobre a própria alma, e o corpo como um Nabokov ou um Dostoievsky? Quem sabe haja alguém assim, mas este não era eu. Em compensação eu não usava óculos, tinha menos tecido adiposo e uma agilidade física invejável e nenhuma sensibilidade.
Incapaz de decidir o que fazer diante das duas, ao cabo de uma noite de festa típica dos quinze anos, fui pela primeira vez apresentado a maravilhosa crueldade feminina, crueldade que permeou minhas fantasias e meu imaginário por anos a fio. Se você não sabe o que fazer, alguém dirá a você, para todo bem e todo mal que isso representa. Posto em um canto meio escuro, e nesta época uma boa festa era repleta de cantos escuros, fui levado a este canto sem alarde, apenas movido quase imperceptível, passo antepasso, até este oásis de segurança onde as mãos se tornavam nossos olhos. A primeira tomou minha mão, não disse nada, os olhos negros, grandes e especulativos cravou um beijo, inesquecível beijo, a segunda de pronto me puxou, fechou os olhos, pôs as mãos sobre meu peito e fez o mesmo. Aquelas duas meninas dissiparam todas as minhas certezas, eu tolo, prostrado diante delas assim permaneci por uma fração de tempo quase interminável, e elas se foram e eu fiquei ali sem nada fazer, apenas fiquei ali parado.
Eu as encontrei outras tantas vezes em uma praça onde nos reunimos todos os finais de semana, aos poucos fui descobrindo o que era paixão, o que eram as meninas e como eu poderia repetir aquilo novamente, elaborei muitos planos, todos em segredo, mas elas sempre estiveram um passo á frente, pouco importa, ao quinze anos eu fui apaixonado pelas duas, tomado pelas duas e pude, aos poucos, aprender do que é feita a paixão, achava que era amor, mas aos quinze anos, isto é  por demais complicado, eu apenas sei que me senti mais humano.
Eu ainda as beijei muitas outras vezes.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Banqueiro e Carlos Fuentes



Há uns quatro anos atrás fui trabalhar fora de São Paulo, para a família de um banqueiro, era um banqueiro local, alguém provinciano e pequeno em comparação com um Setúbal ou um Amador Bueno, mas como todo bom sujeito provinciano era pretensioso e arrogante.
A arrogância era fruto da sua riqueza, da posição que ele e a família ocupavam na cidade e na comunidade local, em verdade eu poderia ter sido poupado de ter conhecido tal figura, mas a pessoa que me contratou exigiu que eu conhecesse o gênio financeiro da família, e não tive escolha.
Com a pompa de quem pensa ser um Rockfeller ou um JP Morgan, o banqueiro me recebeu em uma sala escura decorada com certo bom gosto, mas verdadeiramente soturna, não havia janela ou qualquer coisa que remetesse a ideia de se estar um edifício ou lugar algum, parecia lugar nenhum.
O banqueiro me recebeu ao lado de seu familiar e de pronto me alertou, “não sou um homem de palavras, sou um homem que acredita em ação” e continuou, sabendo que falava com um professor, como quem alerta e ao mesmo tempo busca orientar pelo justo e reto caminho da verdade, que de certo me conduziria á plagas mais paradisíacas do que aquelas em que sempre vivi, “gente que fala e pensa muito não serve, eu mesmo já li muito, e odeio estes escritores que ficam fazendo a louvação das palavras.”
É certo que eu estava um tanto enjoado, para não dizer contrariado de ficar ouvindo o tal banqueiro, e para minha surpresa ele disse, “eu acabei de ler um livro, (havia ganhado de aniversário de algum desavisado) um tal de Carlos Fuentes, ( o livro era Este é meu Credo por mais que tentasse não conseguia lembrar o título, e eu fiquei chutando alguns títulos até ele se lembrar)  o camarada faz uma apologia da palavra, um chato, não sabe nada, - arrematou com uma certeza- este homem nunca soube o que é ganhar dinheiro. Por isso não tolero palavras, eu gosto de quem faz, porque as palavras se perdem, mas a ação não.”
Na avalanche de estultices, me controlei, apenas argumentei com o banqueiro se ele não concebia haver neste mundo pessoas que tivesse outras tantas preocupações e interesses capazes de serem mais sedutores que apenas ganhar dinheiro, e se as palavras fossem este vazio, e todos assim acreditassem o que seria da nossa civilização? Um punhado de homens e mulheres incapazes de acumular saberes pelo simples fato de não fazerem o registro de tudo o que aprenderam durante a vida. Argumentei para não ser respondido, afinal, que era eu para aquele homem? Um  nada ou quase nada.
Carlos Fuentes foi sendo execrado com todos os intelectuais, em uma torrente de petulância ignorante e associado a descabida pretensão do banqueiro do alto da sua superior capacidade de saber o que é á vida e como trata-la.
O grande escritor morreu ontem, quinze de maio, deixou um legado imenso para a humanidade, e este perdurará por séculos a fio, Fuentes será lido e relido por gerações e gerações para saber quem foram os mexicanos do século XX, e os homens e mulheres latino-americanos, para saber como pensavam os homens de um tempo passado, de um tempo importante para a formação de uma nação, uma identidade e uma cultura. Envolto na maestria lírica das palavras e em um profundo conhecimento de si e do seu tempo nos legou maravilhas a quem puder entender. E o banqueiro é idiota demais para saber do que estou falando.
Quanto ao banqueiro eu não faço ideia do que aconteceu, mas quando se for vai deixar que legado? Um testamento bem redigido, e um punhado de coisas efêmeras, dinheiro, carros, casas enfim coisas efêmeras do mesmo jeito que ele tolamente acreditava serem as palavras, eternas palavras.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Palavra



A maioria das pessoas na vida cotidiana usam as palavras sem nenhuma grande preocupação com seu significado. Em verdade o senso comum é e deve ser assim, porém se tiver um pouco de atenção com cada uma das palavras proferidas pelas figuras do estado, pelos sujeitos que controlam a vida social, jurídica e econômica de país acabamos por nos dar conta de quão importante é saber o que é a palavra.
A filosofia da linguagem poderia ser de grande auxílio aqui, mas não creio ser necessário se debruçar sobre ela para entender o que iremos tratar. Lendo sobre a história recente da Argentina; A Ditadura Militar Argentina 1976-1983 editado pela Edusp, me indaguei sobre uma questão, a palavra Guerra. A ditadura militar argentina, foi a mais cruel e violenta do subcontinente sul americano, mais que a chilena gestada por Pinochet. Em números se fala em 30 mil mortos e desaparecidos, e algo em torno de 300 a 500 crianças, filhas destes desaparecidos, mortas ou desaparecidas.
Os militares argentinos, com a conivência dos Estados Unidos, de instituições respeitáveis como parte da elite da igreja e de outras instituições sociais se arrogou o direito não só de matar e eliminar os inimigos do estado, se pôs a missão messiânica, como bem lembram os autores do livro, de salvar a Argentina de uma ralé incivilizada e bárbara que colocava em risco cultura e modo de vida argentino.
A escolha da palavra Guerra não é gratuita, foi usada por outras ditaduras pelo  mundo, mas aqui adquiri conotação especial dada as suas particularidades, violência e desumanização total de suas vítimas. Em uma guerra, por definição, sugiro se consultar a Enciclopédia Einaudi o verbete guerra, nele esta claro que um conflito armado não se da realizando sequestros ou emboscadas, a amplitude do conceito não deixa dúvidas que o que se fez na Argentina, assim como no Chile, no Brasil e no Uruguai foi o terrorismo de estado, o uso indiscriminado do aparato estatal com homens, armas, instituições em prol de uma causa político-militar clara, liquidar a oposição. A palavra guerra não é casual nos discursos e documentos oficiais, ela é a busca efetiva da legitimação de atos, que na maioria dos casos e, especificamente na questão argentina com as crianças, injustificável, mesmo em uma guerra, mas não para terroristas.
Uma guerra se dá entre soldados profissionais e em terreno específico, tendo como balizamento tratados e normas de conduta de ambas as partes. Não estamos afirmando que a guerra é um campo ético, mas é algo feita por profissionais que se colocam em pé de igualdade no campo de batalha, e em fim de contas, devotam respeito pelo oponente. Os estados ditatoriais e seus generais carniceiros usaram ainda a palavra guerra para buscar uma legitimação de ação inexistente, pois não é guerra, e isto é pensado e elaborado em minúcia, não é casual. A guerra que não houve mas precisa ser inventada para fazer sentido tudo o que nem em uma guerra teria sentido algum.
O terrorismo de estado esta baseado em outra coisa, a força subjugadora de sujeitos desarmados, o recurso de sequestros é eficaz, usando do efeito surpresa se prende, tortura, mata e, no caso argentino se saqueava as residências e bens dos sequestrados e se desnaturalizava seus filhos. Desnaturalizar é dar a recém-nascidos ou crianças pequenas outra identidade, uma nova família, desenraizar o sujeito, e pior em alguns casos, ou em todos eles, seus novos pais, são cúmplices do assassinato dos pais naturais.
A palavra guerra aqui não cabe, ela é ofensiva, é um baixo calão, a guerra de fato não se presta a isto, não cumpre a tarefa de buscar a apagar memórias ou reinventar sujeitos, será preciso pensar em outra palavra, inventarmos mesmo um termo que defina isto, a barbárie travestida de conflito, se transformou em uma monstruosidade, não existem explicações, não existem justificativas, sequestros, torturas, mortes, eliminação de corpos jogados no mar e crianças rifadas entre seus algozes demandam outra definição, as palavras não nos livram do mal(u), mas ajudaria, e muito ofertando, uma outra reflexão á atos como este, assim como holocausto é usado para definir a política de extermínio nazista para os judeus.

terça-feira, 3 de abril de 2012

ESCREVER



Por mais de um mês não escrevi nada no blog, queria na verdade fazê-lo, mas de verdade, não tinha o tesão necessário para sentar e produzir alguma coisa digna de ser lida por alguém. Todas as vezes que isto acontece me lembro de Fernando Pessoa e seu ode a preguiça, a sua indiferença com o desejo de escrever, quando a indolência se faz prevalente.
No fundo queria eu viver só de ler e escrever, não que não goste do que faço, dirigir uma escola, me divirte um tanto, gosto das pessoas e das rotinas, e isto me trás conforto financeiro e material. Queria ter nascido Machado, ou quem sabe Dostoievsky, mas não, nasci Dante, não tenho o gênio da escrita e creio ser ainda meio alfabetizado, restando um tanto de qualquer coisa para eu ser alguém que saiba escrever.
Ao menos consigo ler compulsivamente, o problema é não ter um projeto de escrita definido, claro, preciso e tempo para executar, isto nos transforma em um errante da leitura, um livro por semana e um sofá parecem bastar aliviar a minha impossibilidade de pelejar com a escrita. Ler é algo tão prazeroso que vou das teses antropológicas de L. Dumont sobre o sistema de casta indiano, á estudos históricos sobre as descobertas portuguesas nos séculos XV e XVI, sem deixar de lado a literatura. No último ano leio Lobo Antunes, uma literatura intensa e com certo grau de dificuldade, mas extremamente gratificante, onde as palavras escolhem o escritor e não ele a elas.
Recomendaria o Cus dos Judas e Memória de Elefante, para quem gosta de ler e tem paciência com as palavras um deleite.
Queria poder viver de escrever, mas não vivo, por falta de talento, por falta de tempo, por falta de mim mesmo, deveria saber escrever melhor, mas não o faço, deveria até escrever sobre aquilo que é minha vida profissional, educação, mas no fundo acabo desistindo, tudo às vezes parece muito enfadonho, chato mesmo, então, por que escrever?
Estou esperando a aposentadoria, tenho uma tese desde a adolescência, o sentido de estar vivo é ter uma dezena de livros na estante que ainda não foram lidos, até hoje, mantenho tal prática, quem sabe lá na velhice, eu aumente o número para vinte livros, poderia citar alguns que aguardam desde os meus vinte anos para serem lidos, A Montanha Mágica de Mann e O homem sem Qualidades de Musil. Quem sabe lá no futuro, com o tempo contando contra mim, eu consiga ser melhor escrivinhador, sim, e não escritor, produzir mais ricamente e com menos desculpas. Isto posto, não fantasio que seria eu um Saramago, que na maturidade se apresentou com grande escritor, quero mesmo um sofá maior, mais confortável e uma pilha de livros que me façam capaz de sentir o deleite ao mesmo tempo me movendo para a escrita. Ideias não me faltam, preciso sim de toda preguiça do mundo para ser produtivo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Brasileiro nunca foi Cordial




Desde a minha infância ouço que o povo brasileiro é cordial, um arremedo das profundas reflexões de Sergio Buarque sobre a formação do Brasil acabou virando lugar comum, em especial durante a ditadura militar 1964-1982, no exato momento da minha educação básica.
Repetia-se a exaustão, até para se contrapor a imagem de um estado ditatorial e violento e ao mesmo tempo, isolar os grupos de esquerda que faziam uso da guerrilha para se opor ao regime. Em casa, minha mãe, assim como minhas professoras na escola primária e depois no ginásio diziam, “somos um país abençoado, sem guerras, sem violência religiosa, sem revoltas.” Nosso povo é pacífico e cordial, por isso recebemos tantos e tantos imigrantes, de todas as matizes e credos e os incorporamos a nossa sociedade já miscigenada.
O imaginário social, assim como no discurso oficial e ideológico éramos o povo cordial por excelência, nada poderia abalar nossas convicções acerta de tal certeza. Como me fiz desde adolescente militante político de esquerda, este discurso foi rechaçado por mim desde sempre, e apenas me divertia hoje com as piadas do colunista da Folha de São Paulo, José Simão que ironiza cotidianamente a nossa cordialidade e a crença ainda vigente no senso comum.
Depois de anos sem me sentir acossado pela pecha de ser parte de um povo cordial, fui tomado no mais profundo espírito juvenil, um estado de pura nostalgia da minha juventude, no último dia dezessete desci no aeroporto internacional de Guarulhos vindo de Portugal, comprimido na esteira feita para cem pessoas estava eu e outras duzentas e cinqüentas no encalço da sua mala, quando me dei conta do que anunciava os potentes alto falantes da área de desembarque, dizia uma ladainha do tipo:
       “Senhores passageiros, recolham a sua bagagem mesmo que tenha uma conexão neste aeroporto, pois as suas malas não serão despachadas”
O falatório é mais longo e prolixo mas, a essência era esta, se você fosse fazer uma conexão pegue sua mala na esteira porque senão ela aqui ficará. A questão era que havia mais três esteiras além da minha, a esquerda uma com um vôo proveniente de Frankfurt, e a minha direita um vôo que havia chegado de Zurique, me dei conta que os alto falantes apenas falavam em português, e nada mais, a voz era de um jovem, que lia nervosamente o comunicado, repetidas vezes, mas sempre em português, porém e quem não fala português como fica? Não fica. Simples assim.
Comecei a ficar angustiado com as centenas de estrangeiros que estavam ouvindo aquela ladainha monoglota, e fiquei pensando, se eu estivesse em Istambul, no aeroporto e o cara ficasse dando avisos importantes somente em turco o que seria de mim? Provavelmente eu entenderia que estava em um lugar hostil, no qual ser estrangeiro deva ser um fardo, pois, se na porta de entrada do país as pessoas sequer se dão ao trabalho de falar um língua mais universal que a sua, como inglês, como será daquela porta para fora? Para quem já viajou por lugares menos óbvios como leste europeu, sudeste asiático e Ásia central, sabe o que estou dizendo, não poder ser compreendido ou não compreender o outro é dramático, e pior ainda quando o outro não faz a menor questão de ser entendido.
Se um dia eu tivesse acreditado na nossa cordialidade eu teria deixado de crer ali, naquele momento, um absurdo um país no qual o aeroporto é monoglota, e pouco se importa com quem chega, com o estrangeiro, sinceramente senti um misto de vergonha e angústia diante de muitos que sequer faziam idéia do que ocorria a sua volta. Não somos cordiais, não desejamos ser cordiais, quando muito creio sermos subservientes, mas cordial não.