segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Como foi possível?


Existem livros que passamos anos esperando para ler, assim como bem falava Borges, nunca leremos certos livros por haver uma idiossincrasia entre o leitor e a obra. Esperei anos para ler A Origem do Totalitarismo de Hannah Arendt, passei um mês lendo o livro e dediquei horas em trechos espetaculares e ao mesmo tempo reveladores do ser político no século XX, um deleite.
Coincidentemente revi um documentário sobre a Segunda Grande Guerra, além do filme-documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição,  depois de tantos anos lendo e estudando sobre o nazismo e a ditadura stalinista uma pergunta me aturdia, como foi possível? Como? Como nos permitimos como civilização brotar e legitimar dois regimes que tinham como único fim a crueldade, a negação da vida humana? Como?
Que tipo de dialética é esta que nos revela a ciência como lugar de desvelamento e humanização, e os dois últimos séculos parecem sintetizar todas as nossas pretensões desde os gregos, inventamos, criamos e recriamos objetos, instrumentos e meios espetaculares, por exemplo, meu avô levou 53 dias no mar nos anos 1930 para poder cruzar o Mediterrâneo e o Atlântico entre Nápoles e Santos, antes de morrer, em fins dos anos 1960, o avião fazia o mesmo percurso em pouco mais de 11 horas! O que explica sermos capazes de gerar governos, movimentos e líderes que tinham como único projeto a morte, instrumentalizado pela ciência? Como?
Longe das minhas pretensões oferecer qualquer resposta, mas Hannah Arendt aponta que houve um conluio perverso e doentio entre a ralé européia e movimentos degenerados travestidos de político, mas com intuito de serem apenas movimentos, hordas de homens e mulheres capazes de dividir a condição humana em partes tão maniqueístas que nada poderia haver entre os puros e os impuros, nem sequer a memória de sua existência. Ao mesmo tempo em que isto é espetacular é horripilante imaginar a existência de um Estado, um governo e um movimento desejoso de suprimir a memória de todos aqueles que não eram toleráveis em sua lógica de horror.
Os comunistas liderados por Stalin fizeram sumir da história e da vida milhões de homens e mulheres, não havia exéquias, documentos, referências para os mortos nos campos de extermínio e nas prisões da polícia política. A palavra sumir é até leve diante do fato que um ser humano simplesmente desaparecer, física e humanamente, sua memória iconográfica, documental era simplesmente apagada da vida social, ou seja, determinado sujeito deixava de existir, ou melhor, o estado munido de seu aparato técnico fazia crer que determinado ser humano sequer um dia existiu.
Os nazistas, obedecendo a uma lógica industrial, apenas matavam, com requinte de crueldade e sadismo, como forma de fazer crer a cada um dos seres humanos, judeus, eslavos, ciganos, comunistas, homossexuais entre outras minorias que o problema era ele existir, o fato de cada homem ou mulher existir era um fardo para a humanidade. E estou convencido que uma parte destes seres humanos acreditava nisto, a ralé os convenceu que eles eram um estorvo imenso para a existência do nosso mundo. Exagero? Em filmes feitos pelos próprios nazistas antes da implementação dos campos de extermínio, vê-se homens e mulheres, descendo de um caminhão e correndo para uma vala onde deitavam sobre os mortos e soldados nazistas, sentados a  beira da vala atiravam, quando as valas enchiam eram fechadas e outras abertas, simples assim.
A partir daquele ponto todos aqueles seres humanos se tornavam nada, deixavam de existir, não como as pessoas normais que ao morrerem são homenageadas, reverenciadas e sua memória perpetuada de diversas formas pelos entes que a cercavam, neste ponto, todos sumiam, deixavam de existir, suas referências eram apagadas, seus nomes sequer eram pronunciados, objetos pessoais eram eliminados, os de melhor e maior valor apropriados pelos assassinos.
Como foi possível criarmos regimes políticos com tais características, ironicamente, o desenvolvimento da ciência e da técnica tornou possível que estes regimes se mostrassem eficiente no extermínio de seres humanos, não me incomoda este fato, mais do que a percepção de uma civilização disposta a ter a morte como fim e a negação do ser humano como meio, por mais que busquemos explicações sob ótica de um ser normal, tais regimes são inexplicáveis, ininteligíveis. Como foi possível? Como?

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Previsibilidade é Tudo que Queremos


Todo brasileiro, homem ou mulher com mais de trinta anos assim como eu terá mais facilidade em entender o que vou escrever neste blog. Sou de uma geração que nasceu, cresceu e chegou á vida adulta sem saber o que era uma vida previsível, ou seja, conhecíamos apenas o  presente, e mesmo assim precária e porcamente. Cresci em meio a uma inflação e uma crise econômica constante e ininterrupta por mais de trinta anos, quem viveu estes dias, meses, anos e décadas no Brasil entende o que digo, não havia futuro, pois as pessoas que viviam do seu trabalho sabiam apenas que hoje daria para comprar comida em determinada quantidade ou mesmo uma roupa ou um calçado, amanhã o dinheiro ganho com o suor do rosto não conseguiria pagar por aquilo que precisávamos, o valor do trabalho e das coisas inexistia.

O futuro era uma incógnita, uma aposta, pois se vivia em uma gangorra esperando que novo plano seria inventado para regular nossas vidas, lembro-me das vésperas do Plano Collor, a loucura das pessoas meio atônitas nas ruas no centro de São Paulo, entre a sete de abril e conselheiro Crispiniano, o Mappin e em outras grandes lojas os preços mudavam a cada três horas, e nada parecia fazer sentido, um frenesi meio apocalíptico que deu naquilo que todos sabemos, um plano maluco e um governo corrupto.
Em verdade este não é um texto das minhas memórias de juventude, é que refletindo sobre o crescimento de meus filhos e o como eles vivem hoje, me dei conta de como a vida ficou melhor, mais digna, menos imprevisível, e não é isto o que no fundo todos nós desejamos? A despeito de uma meia dúzia de certezas todas elas pouco felizes, a vida é um necessário caminhar pela rotina, pelo previsível.
Ouvir as pessoas no cotidiano faz crer que a maioria delas nega o quão feliz são em suas rotinas, na repetição de seu dia-a-dia,  quando no fundo o que a maioria deseja é uma vida previsível, não no sentido de saber o que será feito da rotina diária, mas sim, previsível por saber o quão possível a vida pode ser planejada, ordenada e pensada como algo posto sob o meu domínio. Os céticos dirão ser um enfado tal situação, pois bem, visite um país em guerra, uma nação que viva em hiperinflação e você irá entender de qual previsibilidade se trata aqui, mesmo em casos de desastres naturais, quando milhares ficam desabrigados ou impedidos de retornar as suas casas, o abatimento e a tristeza se apresentam por destituir a vida de um continum essencial.
As tragédias naturais ou as guerras são evidentes na transformação do previsível em imprevisível. Uma existência em descontínuo produz nos seres humanos o afloramento dos instintos mais básicos, o bom e velho Darwin sabia o que dizia quando traçou a evolução e as emoções humanas, sem poder pensar no amanhã como algo previsível, as nossas emoções e pensamentos comportam com insegurança, e me permito uma ilação, quando olho sociedades do terceiro mundo ou comunidades pobres em sociedades muito ricas parece evidente a propensão a violência. Sem a previsibilidade a vida cotidiana e o futuro, tudo se torna um presente eterno, desregrado e alimentado por ações que tem como único fim suprir o imediato. Não é preciso entrar em uma favela tomada por traficantes, em um grande centro urbano, para saber que aqueles que se acercam do negócio das drogas e todos que estão a sua volta resumem a existência a um presente sufocante, nada vai além do tempo que se vivi. A percepção de uma vida sintetizada em um presente contínuo demanda de cada sujeito o fim de qualquer previsibilidade, a vida é feita aqui e agora, nada mais desumano, nada mais infleiz.
Se não pudermos ter garantias mínimas de previsibilidade da vida, de quando poderemos casar, ter filho, passear, aposentar, comprar um velho objeto de desejo o que restará? A sensação de que a vida é um estado de permanente presente do qual se vive hoje para não haver amanhã, isto quase transformou gerações inteiras no Brasil em cínicos, pessimistas, com a existência e propensos a um estado de violência, se não física, uma violência emocional da qual estar vivo era o maior fardo.