Existem livros que passamos anos
esperando para ler, assim como bem falava Borges, nunca leremos certos livros por haver uma idiossincrasia entre o
leitor e a obra. Esperei anos para ler A
Origem do Totalitarismo de Hannah Arendt, passei um mês lendo o livro e
dediquei horas em trechos espetaculares e ao mesmo tempo reveladores do ser
político no século XX, um deleite.
Coincidentemente revi um documentário
sobre a Segunda Grande Guerra, além do filme-documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição, depois de tantos anos lendo e estudando sobre
o nazismo e a ditadura stalinista uma pergunta me aturdia, como foi possível?
Como? Como nos permitimos como civilização brotar e legitimar dois regimes que
tinham como único fim a crueldade, a negação da vida humana? Como?
Que tipo de dialética é esta que nos
revela a ciência como lugar de desvelamento e humanização, e os dois últimos
séculos parecem sintetizar todas as nossas pretensões desde os gregos,
inventamos, criamos e recriamos objetos, instrumentos e meios espetaculares,
por exemplo, meu avô levou 53 dias no mar nos anos 1930 para poder cruzar o
Mediterrâneo e o Atlântico entre Nápoles e Santos, antes de morrer, em fins dos
anos 1960, o avião fazia o mesmo percurso em pouco mais de 11 horas! O que
explica sermos capazes de gerar governos, movimentos e líderes que tinham como
único projeto a morte, instrumentalizado pela ciência? Como?
Longe das minhas pretensões oferecer
qualquer resposta, mas Hannah Arendt aponta que houve um conluio perverso e
doentio entre a ralé européia e movimentos degenerados travestidos de político,
mas com intuito de serem apenas movimentos, hordas de homens e mulheres capazes
de dividir a condição humana em partes tão maniqueístas que nada poderia haver
entre os puros e os impuros, nem sequer a memória de sua existência. Ao mesmo
tempo em que isto é espetacular é horripilante imaginar a existência de um
Estado, um governo e um movimento desejoso de suprimir a memória de todos
aqueles que não eram toleráveis em sua lógica de horror.
Os comunistas liderados por Stalin
fizeram sumir da história e da vida milhões de homens e mulheres, não havia
exéquias, documentos, referências para os mortos nos campos de extermínio e nas
prisões da polícia política. A palavra sumir é até leve diante do fato que um
ser humano simplesmente desaparecer, física e humanamente, sua memória
iconográfica, documental era simplesmente apagada da vida social, ou seja,
determinado sujeito deixava de existir, ou melhor, o estado munido de seu
aparato técnico fazia crer que determinado ser humano sequer um dia existiu.
Os nazistas, obedecendo a uma lógica
industrial, apenas matavam, com requinte de crueldade e sadismo, como forma de
fazer crer a cada um dos seres humanos, judeus, eslavos, ciganos, comunistas,
homossexuais entre outras minorias que o problema era ele existir, o fato de
cada homem ou mulher existir era um fardo para a humanidade. E estou convencido
que uma parte destes seres humanos acreditava nisto, a ralé os convenceu que
eles eram um estorvo imenso para a existência do nosso mundo. Exagero? Em
filmes feitos pelos próprios nazistas antes da implementação dos campos de
extermínio, vê-se homens e mulheres, descendo de um caminhão e correndo para
uma vala onde deitavam sobre os mortos e soldados nazistas, sentados a beira da vala atiravam, quando as valas
enchiam eram fechadas e outras abertas, simples assim.
A partir daquele ponto todos aqueles
seres humanos se tornavam nada, deixavam de existir, não como as pessoas
normais que ao morrerem são homenageadas, reverenciadas e sua memória
perpetuada de diversas formas pelos entes que a cercavam, neste ponto, todos
sumiam, deixavam de existir, suas referências eram apagadas, seus nomes sequer
eram pronunciados, objetos pessoais eram eliminados, os de melhor e maior valor
apropriados pelos assassinos.
Como foi possível criarmos regimes
políticos com tais características, ironicamente, o desenvolvimento da ciência
e da técnica tornou possível que estes regimes se mostrassem eficiente no
extermínio de seres humanos, não me incomoda este fato, mais do que a percepção
de uma civilização disposta a ter a morte como fim e a negação do ser humano como
meio, por mais que busquemos explicações sob ótica de um ser normal, tais
regimes são inexplicáveis, ininteligíveis. Como foi possível? Como?
Nenhum comentário:
Postar um comentário